sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Boa Hora

Cá fora, o vento frio da tarde invernosa insuflava o casaco e a toga que, entre dossiers e códigos, eu tremulamente segurava. Estava frio, muito frio, ou era talvez só medo e o medo não é nada senão frio na alma. Entrei e, de imediato, as paredes cresciam de tamanho e eu diminuia, sem os saltos altos do costume que me valessem a ilusão do tamanho físico que não tenho. O pé direito do edifício perdia-se nas alturas e as paredes pareciam surdas às vozes (e eram tantas) que enchiam os corredores. O peso das paredes e dos tectos altíssimos abatiam-se sobre mim e era já sufoco o que eu sentia, no meio daquela multidão. Não via as caras de ninguém, só vultos negros e a sensação de que o chão me ia engolir, de que não conseguia subir as escadarias com degraus que cresciam à medida que deles aproximava os meus pés vacilantes. Sensação dos meus alcanhares e joelhos cederem, vontade de gritar, de fugir ao auto de fé. Medo, gelo cá dentro. Sem coragem para encarar o tecto sob a minha cabeça. Lá em baixo, dizem que há calabouços onde os Arguidos esperam as suas sortes (porque é disso que se trata e o tribunal é uma formalidade kafkiana e distante do entendimento possível).
Começa a audiência e o meu traje está envergado, toda a gente sabe que o meu papel adequado é ficar calada, quieta, cega e muda, não vá a minha boa nascença ou meu triunfo social ser conspurcado por essas formas de sujidade que são o crime e a pobreza que é a mãe deste. Falo, percebo rapidamente que alto demais, agora já nada me pode parar, a engrenagem do Direito está em marcha, a condenação é uma certeza, porque a pitonisa está lá e não se vê e o povo lá fora precisa desta justiça como de pão para as suas bocas famintas.
Percebo que ali ninguém está imune a esse traidor que é o medo e que é ele quem governa aquele ritual. E é esse traidor que se transforma numa trincheira entre os personagens em acção, cavando uma distância adequada à subsitência do nosso sistema social.
A pira está acesa e uma tontura monumental apodera-se de mim, como se o meu sangue se transformasse em vinho misturado com fogo liquefeito. As caras transfiguram-se e, antes de eu deixar de ver, percebo que gotas de uma substância pegajosa, avermelhada, escorrem parede abaixo e percebo finalmente que não sou a única que as vê e que há mais Ladys Macbeth na sala de audiências.
Quando volto a mim, percebo que o José Cardoso Pires tinha razão, quando escreveu que só um povo como o português para ter um tribunal criminal chamado Tribunal da Boa Hora.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

(Mais) quedas

«...de que céu tão alto caímos».

(Camilo Castelo Branco, citado de memória, escrito algures no Amor de Perdição).

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Tentação

Tentação de Te descrer. De Te negar até à náusea e saber depois que nada és senão arrependimento Teu e medo nosso porque descansámos os nossos pecados sobre Ti e porque nos habituámos a ser mais fácil assim. Afinal, apenas és culpa e silêncio. Estás há anos infindos à espera de que acabemos com tudo isto, com este cemitério de homens vivos e não fazes nada. Ouves as minhas orações em silêncio e é silêncio o que me devolves. E quando eu já não tiver nada para Te implorar dir-Te-ei nada e farei nada. Quando chegar o dia de ir para o inferno, já nem me vou lembrar de Ti e há-de haver um tempo em que só o riso do Zaratustra, que enche o inferno, me ocupará os sentidos. E nesse dia, o silêncio será total e a razão de existir será nenhuma. Espero que, apesar disso, sejas clemente e compassivo comigo e me perdoes a minha queda em tentação.

domingo, 25 de novembro de 2007

Pensamento para hoje

Deus perdeu o sentido de humor.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Crónicas do Alentejo (ii)

Estou condenada à miséria e ao opóbrio. A minha biblioteca, essa universalidade de facto e de Direito, está tolhida, fracturada, morta, cortada ao meio (como o Visconde do Calvino). Isto porque, findos os estudos das leis, esta vossa escriba decidiu «adiar» (sim, entre aspas, já que se trata de uma meia-verdade) o regresso às origens. Desta «decisão» (mais aspas) derivou um facto curioso: os Pais desta vossa escriba exerceram uma espécie de direito de retenção sobre a biblioteca que, durante dezoito anos, essa mesma escriba compilou. Resultado: duas meias-bibliotecas que correspondem, afinal, a duas fases distintas da vida: uma no Alentejo e outra em Lisboa. A segunda repete alguns vícios, erros e virtudes da primeira e nela se inspira. A segunda é mais sofisticada, igualmente clássica, mas mais vasta. Faltam-lhe algumas pérolas insubstituíveis da primeira. A primeira é o que ainda sou, a segunda é o que ando a tentar ser.

Na penúltima ida ao Alentejo (após algumas obras que a Família decidiu fazer), esta vossa escriba ia morrendo de apoplexia.Noite alta, fui à estante e agarrei no Zaratustra e percebi que algo de estranho se passara na minha ausência. O livro estava rígido, coberto por uma substância branca, que cobria, com níveis irregulares de densidade, a capa e a contracapa. Quando decidi escolher outro Nietzsche, percebi que se encontravam em idêntico estado. De imediato, convoquei a chefe de orquestra (a mãe desta vossa escriba), que me explicou que houvera, no decurso das obras, um acidente com a prateleira que albergava os Nietzsches: toda a prateleira caíra dentro dum balde de 25 litros de tinta branca.

Não imaginam o que, entre gritos e lágrimas, disse à autora dos meus dias. Todos os Nietzsches da minha indómita juventude mortos dentro de um balde de tinta. Branca, por trágica ironia. Raios partam a moralidade alva que matou o Zaratustra!

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

SMS

Ontem recebi um sms interessante. Dizia assim: «Há que nunca duvidar da capacidade de secura da Sibila». Contexto: preparava-se aqui a escriba para mandar um excelente cavalheiro àquela banda, quando decidiu submeter tal desiderato à superior prudência da sua Advogada. Esta última, Senhora sabedora do seu mister, disse discordar, porque tal podia induzir proximidade (sim, claro, não há nada que revele maior proximidade no trato do que mandar a contraparte à merda). Eu descansei-a, dizendo que tinha mandado o gentil cavalheiro à dita, mas com a adequada secura. E ela não duvidou...pudera!

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Coisas para pensar

Dou por mim, noite alta, após longa vigília sobre a mesa de trabalho submersa dos assuntos das leis, a pensar na Verdade. Penso na Verdade, com maiúscula, e sinto-me a encolher na cama que não me consegue dar repouso. Penso no Deus em que acredito sobre todas as coisas e um medo cortante e frio apodera-se do meu corpo cansado. Por mais que queira deixar de pensar, vou sempre parar ao Evangelho segundo S. João e ao silêncio com que Cristo brinda Pilatos quando perguntado sobre o que é a Verdade. Adormeço quando o sol já se abeira da janela, e meia-morta, tento arranjar força para mais um dia neste cemitério de gente que se pensa viva. E durante todo o dia- e, e especial, neste mister que é o meu- , tento encontrar a Verdade e confesso que, quase vinte e sete anos nisto já me dão legitimidade para dizer basta.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Segredo de confissão

- Senhor Padre, nem imagina...
- Diz, minha filha, eu escuto-te...
- Sonho que mato gente e que isso me faz feliz. Fico cheia de sangue, enquanto decepo gente à machadada...
- Filha isso não é pecado, é apenas o teu subconsciente. Reza, porque...
- O Senhor Padre não está a perceber...eu sonho com coisas terríveis- o maior dos pecados- e isso faz-me sentir poderosa, imparável...e o pior é que penso que sonho isso porque quero isso.
- Oh, R., mas que coisa, agora também fazes interpretação dos sonhos.
- Lembra-se da Tempestade, de Shakespeare...
- Humm...
- «Nós somos feitos da mesma matéria dos sonhos».
- (Silêncio).

Norman Mailer

Cada vez mais gente morta nas prateleiras das minhas estantes.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Saudade

Hoje não subirei os corredores estreitos da necrópole onde jaz o que de ti restou. Não entrarei na florista do costume que, todos os anos me oferece os crisântemos que abomino e que, estarrecida, me contempla quando peço um ramo de rosas vermelhas. Seriam para ti, se tas fosse levar, porque sei agora que és imortal e que estás em toda a parte do mundo e de mim mesma. Tenho saudades de ti e da forma abominável como me deixaste, sem despedidas nem prenúncio de miséria humana. Eu criei-te imortal e tu deixaste-me quando eu estava ocupada demais com os vivos. A tua morte partilhou do mais violento absurdo que a Morte constitui.

Amanhã não lavarei a tua lápide nem verei as pessoas da terra a abeirarem-se, cabisbaixas e meias-órfãs, da Senhora que tu eras. Talvez porque já não estás- nunca estiveste- lá. A tua morte foi a coisa mais irremediável e trágica a que eu tive a infelicidade de sobreviver. Não sei como. Sei apenas que não estás enterrada no Alentejo e que permaneces mais viva do que a quantidade de gente morta que povoa este mundo, que é, a bem da verdade, um cemitério de gente que pensa que está viva.

Tenho muitas saudades tuas e quero que saibas que todos os dias, quando penso que há um céu e um inferno, o céu se me afigura como um lugar mais aprazível porque te sei lá e porque quero muito voltar a estar contigo.