sábado, 22 de março de 2008

Dia Mundial da Poesia

Ser ou não ser

Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.
E anda Hamlet em nós por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.

Até quando? Até quando?

Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah se não ser é submissão ser é revolta.
Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor.

Manuel Alegre

sexta-feira, 21 de março de 2008

Onde andas, onde paira esse espírito que foi teu e que se vai esfumando com o escorrer dos dias e das horas? Por onde paira a tua luz, que não perpassa das páginas que, no écran trémulo do computador, crescem? Que te aconteceu, agora que só queres uma cama para te deitares e um sítio onde a tua cabeça repleta de coisas possa descansar deste sofrimento. Há um escorrer de sangue nesta batalha que te cansa e que te esmaga e que já não é exaltação nem brilho, mas estilhaços de dor que se fragmentam na tua cabeça.

Faltam vinte e oito dias.

terça-feira, 18 de março de 2008

A traição do silêncio

O silêncio não é omissão. É agir doloso e pré-ordenado a intenções nem sempre coroadas por honradez. Advogada de profissão, de barra por opção, aconteceu-me há uns dias um daqueles momentos de terror, em pleno Tribunal da Boa Hora, em que o arguido, contrariamente à estratégia traçada, decide guardar silêncio, quando perguntado sobre o corpus delictus.

Nemu tenetur se ipsum incriminare. Silêncio. E as paredes do convento feito casa da justiça abatem-se pesadamente sobre mim, no momento em que um homem sem consciência de si (nem da ilicitude do seu agir, valha-lhe a advogada) decide calar. E calar não é direito, calar é consentir, por muito que os tratadistas teçam considerações em contrário. Por muito que os princípios sejam hipócritas, que o sistema seja de uma incerteza dolorosa, de uma imponderabilidade absoluta, o silêncio mata e é estigma, é confissão antecipada da culpa.


O silêncio transmuta-se em medo que é o pai da culpa. E a culpa passa dos ombros de um apátrida social para os meus. Uma ira abate-se sobre mim e um dos juízes do venerável colectivo percebe a minha indignação e (pasme-se) sorri-me. Quero um cigarro, quero sair dali, bater com a porta na cara desta farsa, dizer «já chega». Controlo-me, por fim, respiro fundo, tiro os óculos e contemplo a imagem desfocada da sala bolorenta, pejada de guardas prisionais. Os segundos de silêncio seguidos ao momento em que o arguido fez valer o seu direito ao silêncio são uma eternidade de ira que me invade e que me tolda a vista. Ponho os óculos e decido defender o arguido atacando os outros co-arguidos. A ira rapidamente passa de mim para os meus colegas e percebo que ainda há uma réstea de esperança por detrás do silêncio irresponsável e traidor do meu constituinte, porque a traição que ele me fez é finalmente devolvida por mim aos meus ilustres colegas.

Depois do silêncio e do pacto hipócrita que o mesmo deveria fazer com a presunção de inocência, sobra apenas a falta de consciência. Da ilictitude, naturalmente. Em vez de pedir a «costumada justiça», resolvo alterar as alegações e tentar salvar quem decide passar o peso do delito dos seus ombros para os meus, como se o silêncio fizesse todo este ritual kafkiano custar menos, como se o tribunal fosse algo de onde só se quer sair rapidamente e sem dor, ainda que se escolha o pior caminho: o do silêncio, feito consentimento. Este silêncio, fácil para quem o exerce, faz transferir para os ombros dos advogados o peso da condenação, porque calar-se é ficar, de antemão, convencido das razões alheias.

Saio do tribunal com uma colega, que assistia à audiência e que elogia a minha vontade e a minha juventude. Sinto-me pesada por dentro e penso que, daqui a uns anos, estarei num sítio qualquer a escrever, sozinha, onde só o meu silêncio me valha. Amortalho a toga debaixo do braço e tento equilibrar-me nas escadas íngremes. Penso que não vale a pena, que tudo isto é esforço em vão, que a chuva miúda que me cai na cara é infinitamente mais real do que o que acabou de acontecer, porque o que acabou de acontecer ficou inscrito num espaço ininteligível que é o da convicção do tribunal, ou melhor, daquilo que dela subsista quando chegar a altura da decisão.

domingo, 16 de março de 2008

Aborígenes

O meu sobrinho preferido tem tido várias alcunhas, impostas pela minha irmã (mãe do petiz). De pestinha, a terrorista, cada uma dessas alcunhas tem servido para que o meu querido menino seja identificado no círculo familiar. Há uns dias, a criancinha chega a casa, muito indignado e pergunta à minha irmã se acha que ele não é um ser civilizado (atenção que o miúdo tem oito anos). A minha irmã responde com uma pergunta: «mas por que é que dizes isso?», ao que o petiz responde: «Mãe, tu passas a vida a chamar-me aborígene e eu agora dei isso na escola».

O miúdo ficou tão indignado que me telefonou para dizer que queria vir viver comigo, porque na casa dele eram todos uns «aborígenes». Ri-me imenso com o miúdo e mais ainda pela indignação dele. Consegui que fizesse as pazes com os «aborígenes», até que a próxima alcunha chege.

Domingo de Ramos

Hoje é Domingo de Ramos. Enquanto se faz uma tese, os dias esfumam-se, as semanas voam e o ciclos solares deixam de corresponder às rotinas a que nos vamos agarrando, quais bóias de salvação por essa vida fora. Já me acontece deixar de saber em que dia da semana me encontro. Os meus dias são as noites e as manhãs são um terror donde desperto depois de muito café.

Este ano, a minha Páscoa vai ser passada a escrever a tese. Não consigo deixar de me sentir culpada por isto, mas espero o incondicional perdão divino. Espero redenção, paz e agradeço por tudo, inclusivamente pelas dores da alma e pelo cansaço que teima em não me largar. Agradeço por ainda ter vontade de fazer isto, ainda quando tudo parece desagregar-se e ruir à minha volta. Agradeço as circunstâncias adversas, o tempo que escasseia e a vontade que tenho de transformar isto em algo que fique para depois de mim mesma.

Depois disto, vou a correr para o Alentejo e nem tão cedo me põem a vista em cima.

domingo, 9 de março de 2008

Coisas em suspenso

Acontece-me, recorrentemente, deixar pessoas e assuntos suspensos. Por vezes, há relações humanas que hibernam e assuntos que só em sonhos permitimos que nos visitem. E, em sonhos, às vezes, as coisas deixadas em suspenso articulam-se de forma inusitada (porque o sonho é o lugar donde as nossas limitações são proscritas). Basta uma semana para a vida mudar e para nós mesmos sermos levados até à margem direita da vida.

Há três anos aportei à margem esquerda da vida. Muitas das viagens que aí fiz tiveram como resultado alguns posts colocados neste sítio nenhum, conhecido e frequentado pelos poucos que me vão lendo. Esta semana a minha vida mudou. Para duas ruas acima e para um universo praticamente proscrito dos meus wildest dreams. E tudo porque os assuntos deixados em suspenso ganharam forma e vida e me pregaram uma partida muito interessante

Como diz uma secretária minha, nada acontece por acaso.

Viva o acaso.

sábado, 1 de março de 2008

Premonição

Hás-de acordar um dia, numa cama amarfanhada, sem que saibas o caminho para lugar nenhum. Acordarás por ti, porque as horas te traíram e o tempo deixou de ser imposição. Não terás reuniões, compromissos, nem gente aflita de viver a bater-te à porta do gabinete. Não terás de mandar nem de obedecer, de te arranjar nem de parecer bem. Com o passar dos dias, perderás a noção do tempo e dos outros. Desaparecerão os alvos do teu ódio e dos teus amores e tudo será o que tu quiseres, se é que, nessa altura, quererás alguma coisa. Vais finalmente estar sozinha, virada como uma concha que sobre ti mesma se fecha e as dores do mundo deixarão de latejar-te nas costas. Serás então uma espécie de promontório, mar adentro, donde gozarás a saudade de coisa nenhuma.