sábado, 21 de maio de 2011

Nesse dia, acordou, levantou-se da cama revolta e havia uma cicatriz profunda no seu corpo. Era um rasgo, em carne viva, enorme e medonho e ela pensou - num momento esforçado de frieza - como é que era possível estar viva, depois de ter sofrido um golpe daqueles.
Os dias, os meses e os anos passavam e o enigma persistia: como é que era possível estar viva? Raras vezes pensava no que tinha acontecido e, de todas as vezes que se despia e vestia, evitava os espelhos que lhe devolviam a imagem da ferida que não sarava. Mas sabia que não estava morta, nem ia morrer daquilo. Mortos estavam os outros, que andavam como espectros pelas ruas, enquanto ela sabia que estava viva, porque as arestas da ferida lhe doíam noite e dia. Os outros não sabiam o que sentiam, nem se sentiam, sequer. Se calhar alguns deles tinham passado por aquilo, mas tinham continuado com as suas vidas de autómatos, como se nada se tivesse passado. Ela não. Não sarou a ferida nem juntou os estilhaços que de si se desintegraram. E por isso, continuou a sentir-se viva.
Era uma menina bem comportada que, à noite, sonhava com os mortos. Deitava-se e sabia que eles estavam sentados na beira da sua cama estreita e que o espaço que a separava deles não era aquele que vai da vida à morte, mas o do mero acto de fechar os olhos. Por isso, dormia com uma faca debaixo da almofada, não fosse ela precisa para, noite dentro, deferir golpes inócuos a quem se ria da vida, porque estava a coberto da intangibilidade da morte. Mas a menina acreditava que podia matar os mortos, tal era a sua pretensão. Um dia amanheceu decapitada na sua cama de menina, e ninguém suspeitou que os mortos tinham morto um vivo. Realmente, acreditar que há pessoas que se limitam a desistir de viver é mais fácil do que tentar compreender que os mortos caminham entre nós e são capazes das maiores atrocidades.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Todos somos - em medida variável - artistas de circo. Eu sou a menina que caminha no arame. Antes isso do que ser palhaço ou ilusionista.