quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Crónicas do Alentejo (ii)

Estou condenada à miséria e ao opóbrio. A minha biblioteca, essa universalidade de facto e de Direito, está tolhida, fracturada, morta, cortada ao meio (como o Visconde do Calvino). Isto porque, findos os estudos das leis, esta vossa escriba decidiu «adiar» (sim, entre aspas, já que se trata de uma meia-verdade) o regresso às origens. Desta «decisão» (mais aspas) derivou um facto curioso: os Pais desta vossa escriba exerceram uma espécie de direito de retenção sobre a biblioteca que, durante dezoito anos, essa mesma escriba compilou. Resultado: duas meias-bibliotecas que correspondem, afinal, a duas fases distintas da vida: uma no Alentejo e outra em Lisboa. A segunda repete alguns vícios, erros e virtudes da primeira e nela se inspira. A segunda é mais sofisticada, igualmente clássica, mas mais vasta. Faltam-lhe algumas pérolas insubstituíveis da primeira. A primeira é o que ainda sou, a segunda é o que ando a tentar ser.

Na penúltima ida ao Alentejo (após algumas obras que a Família decidiu fazer), esta vossa escriba ia morrendo de apoplexia.Noite alta, fui à estante e agarrei no Zaratustra e percebi que algo de estranho se passara na minha ausência. O livro estava rígido, coberto por uma substância branca, que cobria, com níveis irregulares de densidade, a capa e a contracapa. Quando decidi escolher outro Nietzsche, percebi que se encontravam em idêntico estado. De imediato, convoquei a chefe de orquestra (a mãe desta vossa escriba), que me explicou que houvera, no decurso das obras, um acidente com a prateleira que albergava os Nietzsches: toda a prateleira caíra dentro dum balde de 25 litros de tinta branca.

Não imaginam o que, entre gritos e lágrimas, disse à autora dos meus dias. Todos os Nietzsches da minha indómita juventude mortos dentro de um balde de tinta. Branca, por trágica ironia. Raios partam a moralidade alva que matou o Zaratustra!

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