domingo, 30 de novembro de 2008

Palavras

Não há nada que nos aprisione mais do que as palavras. Quer sejam ditas e ouvidas por gente que não as percebeu e que, todavia, as atribui a nós na nossa ausência, como se houvesse um rasto da nossa existência nas coisas que dizemos, quer sejam escritas e se voltem contra nós em cada leitura feita por olhos alheios.

As palavras deveriam ser um exercício de liberdade, mas não são. São inimigas, logo que saídas da nossa boca ou da nossa pena e, depois de ditas ou escritas, já não são o pincel com recurso ao qual pintamos o mundo, para se tornarem alvo a abater, impiedosas traidoras.

No acto de dizer há uma traição às coisas que se querem dizer e a nós mesmos. As palavras são um simulcro da realidade e, ao mesmo tempo, um compromisso perante os outros que corre o risco de ser mal entendido e, não obstante, colar-se a nós como uma segunda pele que com que o mundo (geralmente cego e surdo, mas estranhamente atento às nossas palavras) nos cobre. Com opóbrio.

domingo, 9 de novembro de 2008

Neutralizar

Viver além de uma existência comezinha implica sofrer a deflagração de guerras diárias. Há mesmo dias em que existem Hiroshimas dentro de nós, porque os seres que nos rodeiam decidem acender rastilhos que provocam deflagrações interiores e para as quais não há remédio que não seja neutralizar.

Neutralizar. Para conseguirmos saber o caminho de volta para casa no fim do dia e para que não andemos a ziguezaguear na rua a falar sozinhos. Para evitarmos que a noite da insanidade se abata sobre as nossas frágeis cabeças. Neutralizar e esperar que o sono apaziguador nos visite e conforte das asperezas de existir. Porque existir é dose, porque resistir ao existir não está ao alcance de todos. Neutralizar e acender um cigarro e ver, no fumo que sobe em direcção ao tecto o nosso ser a reconstruir-se para que, amanhã, mais deflagrações ocorram. É sempre assim, sucessiva e ininterruptamente, ao compasso da cadência pouco monótona dos dias que nos são dados viver.

sábado, 8 de novembro de 2008

Aqui estou. É de noite, lá fora mais do que cá dentro. Estou rodeada de pilhas de documentos e livros que não respondem à agudeza das minhas dúvidas. Há um prazo para cumprir, como se os prazos não fossem, afinal, a minha vida a cumprir-se. E a cada um que desaparece da minha demasiado escrevinhada agenda, há um bocado de vida que se vai embora de mim, porque deixo sempre um pouco de mim naquilo que faço.

Há um medo e uma ansiedade permanentes, a exiguidade do tempo a debater-se com a dimensão incomensurável das coisas para as quais não sei a resposta. É estranha, esta arte que é minha, e que é, afinal a irrefragável aventura de tentar perceber o que as palavras querem dizer. Dizem que os penalistas são seres estranhos. Penso que, em boa verdade, são literatos que tentam esconder-se por detrás de uma profissão banal.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Informação a mais

De todas as coisas que tomamos conhecimento e que nos perturbam até à medula da alma as mais perigosas de serem sabidas são aquelas que nos vêm ao conhecimento sem que sobre elas perguntemos nada. E não perguntamos porque não queremos saber, porque relativamente a certas coisas o voluntário desconhecimento é o acto hedonista que nos protege de tudo aquilo que nos dói saber.

Até que um dia, entre conversas banais e entre diálogos em que alguém que não resiste a contar o que não queremos saber (e que, de antemão, não ousamos nem queremos perguntar) caem-nos bombas em cima e ficamos dias a fio a colar estilhaços de nós mesmos só porque numa conversa banal alguém resolve dar informação a mais.

Não adianta querermos ficar surdos, não adianta votarmos sentimentos e memórias à prescrição, quando alguém decide repristinar vidas que decidimos apagar das nossas próprias vidas. E para isto, não há protecção que nos valha. Vale-nos apenas a esperança de que os outros não resolvam dar-nos informação a mais.

domingo, 2 de novembro de 2008

Má poesia

Chiado, domingo de manhã. Não faz frio o suficiente para que considere a rua um espectáculo digno desse nome. A rua está vazia, Lisboa depois do dia de Finados está vazia de gente e oca de si mesma. Há uma rapariga que me interpela. Tem o ar das raparigas dos inquéritos de rua, que eu afasto sempre, com receio que da minha falta de paciência resultem gestos indelicados. Vista de perto (abeirou-se de mim) parece mais velha, já passada há algum tempo a irreversibilidade dos trinta. Dá-me um poema para ler em vez de um questionário. O poema é pior do que mau. Lembro-me que terminava com um inconclusivo «regresso ao útero da palavra».

A má poesia é uma tragédia. Mas o pior é que a rapariga andava a vender má poesia para comer. É verdade. Disse-me estar desempregada e a «tentar sobreviver». Estranho tempo este, o da luxúria do ter, em que até a má poesia é pretexto para matar a fome.