terça-feira, 30 de outubro de 2007

De repente

De repente, o susto e o medo atingem o vórtice numa dor que me deixa dormente. Lá fora, o trânsito aflito, de carros com gente dentro e com outras vidas dentro delas, impede a descida do silêncio. O ocaso chega, devagarinho, e percebo que nem o mundo nem o ciclo da natureza se interrompem à espera que eu cole, pacientemente, os cacos de mim.

Percebo que tenho de agir. Outra e outra vez. Ou fazer como alguns animais marinhos: fazer-me de morta até que o predador bata em retirada.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Acrescentos

Pior do que cair em tentação é cair no ridículo. Por isso, todos os tias Lhe peço um bocadinho mais do que aquilo que as convenções da Santa Madre Igreja estabelecem: «Não nos deixeis cair em tentação nem no ridículo, mas livrai-nos do mal». Espero que não seja pedir-Lhe demasiado.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Fuga em Ré Menor

Um dia destes vou fugir para o Alentejo. Na minha casa, os móveis ficarão amortalhados com lençóis e o pó irá descendo lentamente sobre as estantes, até uma penumbra branca envolver todas as divisões da casa. A casa encher-se-á da minha ausência e eu desaparecerei para sempre. Acordarei todas as manhãs com o mar a banhar-me os pés nus. Escreverei até à conjura total dos meus medos, até que a dor seja proscrita de mim. À noite virar-me-ei para a parede na esperança que os sonhos me abandonem.

Não envelhecerei nunca e só me aperceberei do passar dos anos pelos ritmos da floração do jardim da casa onde nasci. Envolverei a minha cabeça num turbante de veludo preto e nada mais nela entrará. Irão ver que será como se eu nunca tivesse existido.

Hamlet

Hamlet vagueia, noite alta, pelo castelo de Elsinor. Noite da alma, aquela outra, que o submerge. Só o eco dos passos cambaleantes de loucura, que atroam pelos corredores de pedra. É Inverno e Ofélia já foi levada entre as ramagens dos salgueiros pela fúria das águas. Ofélia desceu à terra e as flores negam-se a furar a neve sobre a sepultura da mais pura das noivas, aquela que já não vai gerar infelizes.
A dormência que sente no corpo e a idiotia fingida, dias a fio, condenam Hamlet à exaustão, o que lhe traz a mesma pena de Macbeth. Hamlet não dorme. E enquanto a respiração pesada de Elsinor albergar sonos e prazeres infames, Hamlet não descansará. A aurora rompe nas lonjuras e o olhar turvado de exaustão permite ainda ao príncipe da Dinamarca vislumbrar um traço vermelho que corta o horizonte, como se de um presságio de sangue se tratasse. Hamlet percebe então que estão todos mortos e que o sangue subiu ao céu. Que o sangue lhe nasce nas mãos e que não há água bastante que o lave. Cambaleia, tomba sobre si mesmo e antes de a sua vista se turvar de sangue, vê Ofélia amortalhada, a acenar-lhe entre as ameias do castelo.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

A dança dos Espectros

A sala estava composta. A mesa ampla das negociações estava novamente rodeada por brilhantes advogados. Nos jornais, as notícias do costume davam conta da realização da reunião. As razões estavam alinhadas, as estratégias traçadas e cada um daqueles advogados sabia exactamente que papel cumprir. Os rostos eram sisudos, fechados, de uma velhice convocada por antecipação à custa da necessidade da representação. Nem uma senhora à mesa. Mundo de homens, hermético, onde o ritmo das negociações seguia o compasso dos vícios masculinos, único espaço de partilha disponível.
Ninguém reparava neles. É difícil reparar-se nas coisas que nos obrigamos a esquecer. Pairavam suspensos sobre a mesa, como medusas de vestes vaporosas e esfiapadas. Eram seres inexistentes, colocados num espaço e num tempo amodorrados pelo esquecimento.
O mais novo dos espectros era o escritor. Falecera quando Filipe aceitara o convite para, depois de um estágio entediante, integrar a lawfirm. Filipe assassinara-o. Homicídio qualificado, cometido com o móbil do «motivo torpe ou fútil» que, no caso, fora dinheiro. Filipe matara por dinheiro, matara a soldo e, naquela mesa de negociações, era o único que, desconhecendo embora a existência do seu espectro, carregava ainda a culpa qualificadora do crime que cometera.
Com o correr dos anos, o conforto da vida e a acomodação que ele propicia levariam a culpa de Filipe até ao limbo do esquecimento. Mas no dia da reunião, o espectro de Filipe era ainda o mais nítido, oculto embora à visão dos presentes.
O actor também viera, não obstante entender que a sua presença era quase injustificada pois, no seu caso, quem o burlou não foi capaz de culpa. Sim, foi uma burla, daquelas a que, por influência napoleónica se costumam caracterizar como suportadas por um artifício fraudulento. Encenação, mentira e trapaça. Chamava-se Luís e cometera um acto atroz: usou a sua arte para passar a fingidor bem pago. Contencioso. Por palco, o tribunal, por personagem, o advogado, por disfarce, a toga. Trocou o futuro incerto pelo emprego calculista da arte. Mas a arte pregou-lhe uma partida: estava a abandoná-lo aos poucos. Por enquanto, tal não representava qualquer perigo, pois era segredo que não tencionava partilhar com ninguém. Até porque um advogado não tem segredos, já que a existência de segredos pressupõe, ontologicamente, a existência de pessoas que os possam guardar e fazê-los subsistir enquanto tal e essas pessoas não existiam no mundo da advocacia.
Os dois espectros evolavam-se sobre a mesa vendo, lá muito em baixo, as bocas a abrir e a fechar dos advogados. Contemplavam-nos, quase incrédulos. A cena era patética ao ponto de os espectros não reconhecerem os seus carrascos. Aqueles advogados eram todos iguais e nem Filipe, nem Luís, artistas por condição, se diferenciavam, afinal, dos demais. Osmose. Simbiose. Fusão, em sentido técnico: de modos de pensar, de viver, de agir. De papéis. De repente, uma corrente de ar varre a sala, as portas e as janelas começam a bater incessantemente. Nesse momento, Filipe percebe que algo está a pairar no ar, mas é incapaz de identificar o que seja. Vergonha da verdade, na sua crua evidência. Mentira cómoda, esquecimento. As manchas que os presentes na sala não vislumbram ser espectros decidem abandonar a sala, fundindo-se numa nuvem invisível aos advogados que, lá de baixo, só sentem o frio que rodopia pela sala e que se escapa pela janela. Filipe, subitamente, estremece e um frio cortante percorre-lhe a espinha. Os espectros saem da sala e, no momento imediatamente antecedente àquele em que as janelas batem pela última vez, Filipe sente, pela última vez na vida, a saudade de um futuro que chacinou. Nunca mais se irá lembrar daquela culpa que, tendo a janela por ponto de fuga, dela saiu sob a forma de um espectro.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Somewhere only we know

Correm, desabridas, desgovernadas, rolam-me cara abaixo e não há dique social nem opacidade que disfarce o efeito que esta canção tem em mim. Ouvi-a, pela primeira vez, no Alentejo, em Março passado, num fim-de-semana em que chorei todas as lágrimas que havia em mim.

Cada vez que oiço isto, elas aparecem de novo, marejam-me os olhos e percebo que i'm getting old and i need something to rely on. E isto dói que não é brincadeira.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Noites brancas

Depois de muita luta com a almofada, consegui adormecer. Caí, então, num sonho que, não obstante recorrente, me impressiona sempre muito: sonhei com a minha filha. Este sonho costuma ter cambiantes, mas a miúda está sempre lá e sei quem ela é porque me chama mãe. Acontece muitas vezes andar pela minha mão em sonhos onde não é protagonista. Anda comigo, meneando a cabecinha coroada com caracoizitos louros e com vestidinhos de veludo azul escuro e meias de renda brancas. Mas desta vez, impresssionou-me mais porque ela era a protagonista. Era um sonho denso, pesado. Eu andava numa correria, sem tempo, e olhava a cada instante para o relógio de pulso. E a minha filha chorava desalmadamente, gritava por mim de cada vez que eu me ausentava para ir a tantos sítios que nem percebia onde e o que eram.

Acordei a meio da madrugada exausta e a chorar. Percebi o mal que ando a fazer a mim própria por não conseguir ter tempo. Nem para a filha que só em sonhos me visita.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Um dia

Um dia destes vou cair no chão. Não me vou espalhar ao comprido, não. Vou cair, direitinha, em qualquer um dos abismos que ladeiam os passeios que orientam os meus percursos. E vai ser uma queda a pique, sem pára-quedas nem almofadas de oxigénio que a amparem e, aí, vou finalmente confrontar-me com a verdade que sei até à negação: não vai estar lá ninguém que me segure e aplaque a fúria da força da gravidade. Vai ser muito grave, sem estrondo, todavia. Só a dor, filha da mãe, concentrada no último instante antes do vazio total, do nada.

Só nesse dia vou perceber que há muito tempo que devia ter desistido da minha colecção de stilletos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Escolhas

Comandar exércitos. Mandar cavar trincheiras, avançar os tanques e formar pelotões de fuzilamento. Ao som de Wagner. Tanhäuser porque é o preferido. Fazer isto tudo sem deixar que percebam que as dores me matam e moem. Que não aguento almoços de trabalho, que é-me insuportável comer. beber e respirar. Que não aguento negociações infindáveis, que a única razão prática que me guia é a crueldade.Fazer tudo isto e não deixar que percebam o equilibrismo que é aguentar-me em pé.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Ressureição

Em tempos de mudança, de regresso ao estudo e de aposição de uma espera que se quer longa nos afazeres mundanos, reincidi em Tolstoi. Como em todas as reincidências, o fulgor da leitura pasma-me em cada parágrafo. Descobri uma pérola negra, feita das paixões indómitas da juventude que, na maturidade, se atiram à cara dos protagonistas com a violência do sentir como só os russos a sabem pintar. No meio de tudo isto, um erro na apreciação da prova num processo penal onde um amante se vê na pele de um jurado. E a culpa, a maldita da culpa, a provar que não há tratadista de Direito Penal que, neste assunto, bata os russos. Eles sabem-na toda.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Máximas

Viver é uma aflição e o Direito é uma aldrabice.

Precaridades

Acordou cedo. Arranjou-se com o esmero do costume, tomou uma refeição frugal. Enquanto se dirigia para o escritório fez dez telefonemas inadiáveis e compôs a agenda que ficou desprovida de espaços em branco até ao fim da semana. Passou o dia em reuniões intermináveis, sem magia nem brilhantismo. Aos trinta, depois de muitos esforços e silêncios, descobriu que o Direito é uma aldrabice, um instrumento refinado de exercício do poder do mais forte. Percebeu que as origens humildes, escondidas por golpes da inteligência e beleza que possuía em doses perigosas, eram muito mais dignas do que aquele mundo de vampirismo polido.
Aos trinta, começou a não conseguir disfarçar os bocejos e a acordar com desconhecidos. Não sei em que dia foi, não me lembro. Lembro-me apenas de ouvir contar que a encontraram com os pulsos abertos (cortes longitudinais- até em matar-se soube ser inteligente) num mar de sangue, dentro da banheira de casa.

Sherazade

Depois de uma retirada para retemperar, Sherazade está de volta a Olissipo.

Bem vinda de volta.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Alentejo



Saudades do pino do sol a descer como um fio de prumo sobre a planície pintada de casario branco e azul. Saudades das buganvílias em flor, do tempo suspenso sobre mim. Saudades do verão que por mim passou, fugaz e fugidio. Saudades dos lanches que pegam com as ceias e do suave murmurar da planície deserta na noite.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Dores

Aos 26 ter dores no corpo foi coisa que nunca me passou pela cabeça. Incapacitada, arrasto-me para o escritório, onde toneladas de trabalho, de gente aflita de viver, se acumulam em cima de mim todos os dias.

Rastejo, dia fora, por todos os ramos do Direito, nele poucas vezes encontrando resposta. Asorte dos meus clientes está na minha poesia e na minha dança, não na ciência do Direito que tenho vindo a acumular. O corpo trai-me todos os dias: nasci com a resistência física de uma Ofélia e o destino reservou-me a tarefa de comandar exércitos. O pior é que as batalhas mais sangrentas têm lugar quando este corpo decide armar-se em filho da mãe.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

(Mais) Medos

Passamos a vida entre duas muralhas feitas de medo. Uma feita do medo de viver outra do medo de morrer.

Coisas terríveis

Temos nas nossas mãos o terrível poder de recusar. Não há nada de tão terrível que no espaço do nosso gesto se possa confinar.