sexta-feira, 31 de agosto de 2007

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Mil vezes a dor de se auto-pensar do que a alegria parola da auto-satisfação.
Mil vezes o nojo que nos fica pela exiguidade do tempo, pela falta de alcance do gesto e da vontade, do que a certeza pateta da idolatria.
Mil vezes o conhecimento das trevas, da solidão e do desespero da compreensão do mundo do que os vôos razantes sobre a existência.
Mil vezes ser perseguido por um coro de parcas do que ceder à sabugice.

Por isto (e por outras coisas) é que gosto tanto de ti.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Balanço de Férias

10 dias úteis de férias, onde abusei da poesia de Torga, da prosa de Vergílio Ferreira e de (mais uma) leitura do Além do Bem e do Mal deram nesta bela dose diária de fármacos:

- 4 aulins por dia;
- 2 ampolas Panvitol;
- 2 ampolas sargenor 5;
- Viternum 3 xs ao dia;
- 4 comprimidos miostenil por dia;
- 1 valdispert ao deitar.
- 1 antioxidante cujo nome se me varreu.

Pensem bem, antes de escolher leituras.

Prece (II)

Não sou uma mulher exemplar. Por isso mesmo, desde há alguns anos a esta parte a minha oração da manhã é mais ou menos isto (dependendo naturalmente qualquer adenda da inspiração que a minha bilis matinal me permita) : Meu Deus, consagro-te este dia de trabalho, pedindo-te perdão das minhas faltas, perdão pela imperfeição a que a impossibilidade de te imitar me condena. Prometo mudar, confiar no género humano, amar o próximo incondicionalmente, mas já agora, concede-me mais uns diazinhos de dilação.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Prece

Deus, que estás em todo o lado, dá-me paz, uma paz plena, sem mas nem porquês, dá-me calma, dá-me esperança. Toma este fragmento de vida e faz dele instrumento da tua Paz e devolve-me um pouco dela. Livra-me das tentações, dos abismos e das dúvidas. Livra-me da desconfiança em relação aos outros e de cair no ridículo. Só não te peço que me perdoes como eu perdoo aos outros, porque essa parte da oração soa a falsa mal a penso. Só o teu filho morreu pelos Homens e deu a outra face e perdoar, meu Deus, só tu consegues. E já agora, perdoa-me por ser assim, mas sabes que eu não aspiro à santidade.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Crónicas do Alentejo (ainda)

Dinis rompeu o silêncio. De umas palavras hesitantes, desconfiadas, ciciadas atrás das saias da minha irmã, o petiz arroga-se agora a construção de raciocínios mirabolantes, associações, narrações e delações (sobretudo dos disparates dos irmãos).

Temos afilhado.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Saudades

Saudades de ti. Insuportáveis, cada vez mais e sempre que te lembro no absurdo da tua morte. Saudades irremediáveis, de tudo o que nunca me disseste, de tudo o que não te ouvi. Apenas um silêncio, centrípeto e fechado num nó que não se desata, num espaço que não se preenche no meu coração. Tanto tempo te tive que te criei imortal. Partiste há dois anos, sem doença que avisasse o caprichoso prenúncio dos deuses. Desde então, a dor de te pensar, única maneira de continuares a existir em mim, aplaca-me as palavras à invocação do teu nome e um silêncio cada vez maior cresce no espaço que em mim ficou vazio de ti.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Alentejo


Chego cansada de mim, cansada dos outros, a transbordar de poesia. Por uns dias, posso ser outra, planar na outra esquina de mim mesma e por aí me deixar ficar. Lisboa fica longe e depressa esqueço o mundo absurdo que construí nos últimos anos à imagem e semelhança de uma deusa que venero sem amor.

Aqui encontro as minhas razões primitivas, as minhas dores lancinantes e o meu querer em estado bruto. Aqui me fundo com a natureza agreste, com as casas brancas e com a calçada que poetas e políticos de outros tempos pisaram. Aqui contemplo o rio que serpenteia no sopé das serras que do Algarve se desprendem, um rio tão velho que escavou esta natureza íngreme que cada ano me é mais difícil percorrer. Aqui vejo ramos de buganvílias a espraiarem-se nas paredes brancas, tão brancas, de uma limpeza que só no Alentejo se encontra. Aqui está uma terra indiferente aos alvores de um Abril que quase niguém já lembra. Uma terra pesada e lenta, onde se cultivam poetas.

Aqui descubro um tempo suspenso, que desde há séculos me espera, compassivo e lento. Um tempo que me esmaga, tão grande é a certeza da minha finitude. Aqui encontro poetas, uns mortos antes de eu os poder ler, outros que conheci e que se transformaram, entretanto, em epitáfios donde me contemplam com a ironia que só a certeza da sua insuperável imortalidade lhes permite. Mas a maior parte dos poetas desta terra morre analfabeta, acto de egoísmo inconsciente com que aos demais castigam. Aqui encontro o José Camacho Costa, não já a declamar Herberto Helder como na tarde em que o conheci, mas imortalizado no cine-teatro cujo palco pisei demasiadas vezes na outra face de mim. Lembro-me dos versos do Zé Pedro, da corrosão da cal que o levou cedo demais e nos privou de tudo o que não houve tempo para escrever, nesta terra onde o tempo por todos espera.

O Alentejo é poesia feita em palavras e em terra. A minha terra.

Outros Outonos

O Outono das relações entre homens e mulheres começa quando as verdades são arremessadas como setas e as razões nos crescem como se de cabelos e unhas se tratassem. Começa então o coração das trevas, a guerra aberta sem Convenções de Genebra, com trincheiras e espaços em branco que não dão espaço nem vazão ao ódio e à matança à queima roupa.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Pensamento

Sou uma princesa de sandálias douradas com saltos de sete centímetros que caminha em cima de um fio que liga as duas margens de mim mesma.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Máximas de vida

Era uma reunião que nenhum dos intervenientes tinha vontade de fazer. O tema era mau, as razões piores ainda, da paciência nem sombra, do trato social, absoluto esquecimento.
Enquanto expunha as preclitantes razões do meu constituinte, um dos intervenientes seguia o meu discurso pelas ondas hertzianas que naquela sala vaguevam suspensas, cravando um olhar perdido no mobiliário decrépito e nas paredes que confinavam aquela exígua divisão.

Quando, por fim, me calo, eis que o meu atento ouvinte (que vim depois a saber ser catedrático de antropologia) atira-me com esta frase retumbante: «Sabe, Sotora, há coisas que se ouvem que é melhor ignorar, senão começamos a falar sozinhos na Rua».

Inferno

O pior de ter o Inferno de braços abertos à minha espera é a certeza que, dia após dia, se me torna mais inquestionável, de ir lá encontrar imensa gente minha conhecida.