sábado, 24 de maio de 2008

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Para onde vais, agora que a noite se abateu sobre esta cidade, e caminhas em direcção a uma casa que não te pertence? Para onde vais, agora que no edifício-formigueiro onde, dia a dia, trabalhas, trabalhas, as luzes se apagaram e há uma trégua consentida nos afazeres até que o sol se volte a levantar? Para onde vais, agora que estás sozinha nesta rua deserta, com uma mala cheia de livros onde, debalde, procuras resposta para tudo quanto te perguntam? Para onde vais agora, que essa mala pesa tanto, e é como se todas as gravidades do mundo te colassem o corpo ao chão, dificultando a marcha sem direcção? Para onde vais agora, que ninguém te procura, ávido de soluções e de milagres, agora que apenas há uma solidão entrecortada por cigarros que se sucedem até que chegue a alvorada de outro dia e tudo isto se repita? Para onde vais, agora que podes ser tu, agora que as luzes se apagaram sobre ti, que o traje balança, vazio do teu corpo, no cabide da porta? Para onde vais agora, que só há noite e solidão, nesta terra onde continuas a ser uma estranha? Para onde vais, depois disto?

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Desobediência

Cumpro o imperioso dever de anunciar que este meu espaço de negritude ignorará o que os homens que fazem as leis têm para dizer sobre a estilização da palavra. Estranho tempo, este, em que o lastro cultural da língua é colocado na dependência dos quereres volúveis das maiorias governativas.

Devo confessar que a ideia de um Ministério da Cultura já é algo que fere a minha sensibilidade liberal. Quando a tendência totalitária se estende à definição de um padrão que deveria corresponder a um processo de evolução natural, onde apenas a Ciência deve ter algo a dizer- mas que, estranhamente, é colocado sob a égide do Ministério da Cultura-, assistimos ao grau máximo da intervenção do Estado num processo que não cabe em decretos, porque é a essência, em devir, do acto se se ser e de perdurar no mundo em forma de palavra. A escrita é o mais sublime dos gestos, o mais alto instrumento do pensamento. Uma vez ouvi alguém dizer que quem não são escrever não sabe pensar. A escrita é o mundo pensado.

O dever de um Estado é o de garantir condições de igualdade no acesso à formação, em todos os seus níveis. A cultura deve resultar de uma opção feita individualmente, no pressuposto de que se aproveitaram as condições de educação proporcionadas. Se ao Estado cabe debelar desigualdades no acesso à educação, a cada um de nós, como homens e mulheres livres, cabem as opções culturais.

Somos, contudo, um país de cultos e cultas, que se pavoneiam em vernissages, onde derramam citações de livros que nunca abriram e se dão ares de gente fina. E isto é a cultura que temos e que, permitam-me o pessimismo, continuaremos a ter. Este acordo é a confissão hipócrita de quem se destaca à custa da dolosa bestilização alheia. E este acordo é bestilização e ignorância em estado bruto.

Não se trata de actualizar a língua. Trata-se, isso sim, de consagrar, como formas padrão, formas incorrectas, resultantes de uma norma de Português simplificada, onde o lastro etimológico da nossa Língua se perdeu, fruto do desconhecimento, da distância e do facilitismo.


O que conhecemos hoje de Aristóteles, de Nietzsche e de Kant deve-se, não ao que estes disseram, mas do que deixaram escrito. O pensar é o pensamento do que se escreve e, quando se escreve, trate-se de um trabalho científico ou de um exercício de dissecação dos nossos sentires, há uma mensagem que perdura e que ganha uma modulação que só por via da escrita se atinge. Verba volent. Mas a escrita fica e a língua atinge a sua sublimação total nesse acto de precipitação da essência do que se quer transmitir que é a escrita.

Por isso, meus caros, anuncio-Vos a assumpção (com p) de uma atitude de desabrida desobediência a esta tendência totalizante da bestilização colectiva que é o Acordo Ortográfico.

Continuarei, por isso, a usar as consoantes mudas, os agás e tudo quanto me tem sido ensinado, essencialmente, pelos livros que li. Só não desato a escrever à Fernão Lopes em razão da minha profissão- e tanto dela é a estilização da palavra-.

Estamos conversados.