terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Da estupidez

Ser estúpido é passaporte. É convite de gala ao estar no mundo. O estúpido não maça ninguém, geralmente o mal que faz é como um boomerang impulsionado pela sua estupidez que, lançado contra tudo e todos, volta a quem a arremessou: o estúpido.

Proponho-me fazer o elogio do estúpido, daquele estúpido empedrenido, limitado nos horizontes, alargado no círculo da ambição para aquilo que não merece. O estúpido prolifera, frutifica e multiplica-se. A sua obra é virulenta e espalha-se como o calor por uma rede de amianto. Infelizmente, eu sou uma espécie de isolante que despreza o modo de viver sendo estúpido, e que, talvez por isso mesmo, no meu curto estar no mundo, tenho vindo a ser rodeada por uma cintura deles que tentam forçar a passagem por mim adentro. Resta-me admitir que uma estupidez é realmente obra. Não há nada tão desprezível e, como diria Oscar Wilde, tão perfeito na sua absoluta insuperabilidade como a estupidez humana.

A estupidez defende quem em si a alberga da decepção, do desânimo e da amargura. É meio caminho andado para uma existência terrena sem sobressaltos. Ser estúpido é viver no mundo sem se impor regras de actuação, princípios, ética ou remorsos. Ser estúpido é condição de felicidade, porque o estúpido tem-se a si mesmo por modelo de conduta, paradigma do Ser.

Eu estou do lado das trevas. Sou uma heroína trágica. O mundo pesa-me toneladas sobre as costas e a minha consciência lança-me agulhadas de silício nos calcanhares. Na vida e no Direito Penal, que se trama é quem tem consciência e, sobretudo quem a tem auto-reflexiva.

Por tudo isto, mais vale ser estúpido.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

sábado, 12 de janeiro de 2008

Tempo

Corro, feita louca, atrás do tempo, atrás do percurso dos ponteiros do relógio. O meu coração já nem bate, é só a propulsão dos ponteiros que me vai mantendo viva, entre compromissos de ontem, projectos de amanhã e afazeres de hoje. Entrou dentro de mim esta espécie de ditadura da irreversibilidade, que é a face côncava do Tempo.
É tudo para ontem, e ontem já era sufoco e exaltação, já era impossível colocar um parêntesis de descanso, um suspiro de alívio nos afazeres. Acordar para o dia de amanhã é um desalento, porque o amanhã é a montanhoa donde rolam as pedras que Sísifo carregou. E de repente, descubro que o Sísifo sou eu e que os meus projectos são pedras que rolam montanha abaixo.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Cicatriz

Onde estás? Tantos anos se passaram e há uma cicatriz no meu corpo que te chama, que chama o toque da tua mão e que lateja, compassando a tua ausência dos dias que me restaram depois de ti. Depois de ti houve um silêncio, um parêntesis nos sentidos e uma modorra que me arrastou ao limbo do sofrimento transmutado em dor perene. Cicatriz, antiga como o mundo, parte de mim neste corpo que não me pertence. Curiosamente, não me lembro do meu corpo antes da cicatriz, antes do rasgar de dor que a precedeu, que cortou as suas arestas e deixou um rasto de carne viva dias a fio. Não sei sequer se tinha corpo antes de ti.

Sinto a dor do membro mutilado, latejante e viva em cada dia que a minha pele continua a reclamar o teu toque. Cheguei a duvidar que tivesse permanecido mulher, tão estranho se me tornou este corpo cicatrizado. Quando voltei a senti-lo, não pensei em ti, mas a cicatriz continuava lá, mais esbatida talvez, talvez facilmente confundível com o rasto de um beijo mais arrebatado, com os toques persistentes de um cigarro aceso. Depois de ti, houve um tempo em que a presença da minha nudez me era insuportável, com a cicatriz terrível que parecia a tua boca a dizer aquelas coisas que eu não podia nem quis ouvir. Cortei o cabelo, pintei-o de outra cor, para que o teu toque desaparecesse dos compridos fios que me desciam pelas costas. Quis arrancar a pele, para não ter de ver a cicatriz, mas não o fiz. Por isso é que ainda me dói, tanto, tanto.