terça-feira, 18 de março de 2008

A traição do silêncio

O silêncio não é omissão. É agir doloso e pré-ordenado a intenções nem sempre coroadas por honradez. Advogada de profissão, de barra por opção, aconteceu-me há uns dias um daqueles momentos de terror, em pleno Tribunal da Boa Hora, em que o arguido, contrariamente à estratégia traçada, decide guardar silêncio, quando perguntado sobre o corpus delictus.

Nemu tenetur se ipsum incriminare. Silêncio. E as paredes do convento feito casa da justiça abatem-se pesadamente sobre mim, no momento em que um homem sem consciência de si (nem da ilicitude do seu agir, valha-lhe a advogada) decide calar. E calar não é direito, calar é consentir, por muito que os tratadistas teçam considerações em contrário. Por muito que os princípios sejam hipócritas, que o sistema seja de uma incerteza dolorosa, de uma imponderabilidade absoluta, o silêncio mata e é estigma, é confissão antecipada da culpa.


O silêncio transmuta-se em medo que é o pai da culpa. E a culpa passa dos ombros de um apátrida social para os meus. Uma ira abate-se sobre mim e um dos juízes do venerável colectivo percebe a minha indignação e (pasme-se) sorri-me. Quero um cigarro, quero sair dali, bater com a porta na cara desta farsa, dizer «já chega». Controlo-me, por fim, respiro fundo, tiro os óculos e contemplo a imagem desfocada da sala bolorenta, pejada de guardas prisionais. Os segundos de silêncio seguidos ao momento em que o arguido fez valer o seu direito ao silêncio são uma eternidade de ira que me invade e que me tolda a vista. Ponho os óculos e decido defender o arguido atacando os outros co-arguidos. A ira rapidamente passa de mim para os meus colegas e percebo que ainda há uma réstea de esperança por detrás do silêncio irresponsável e traidor do meu constituinte, porque a traição que ele me fez é finalmente devolvida por mim aos meus ilustres colegas.

Depois do silêncio e do pacto hipócrita que o mesmo deveria fazer com a presunção de inocência, sobra apenas a falta de consciência. Da ilictitude, naturalmente. Em vez de pedir a «costumada justiça», resolvo alterar as alegações e tentar salvar quem decide passar o peso do delito dos seus ombros para os meus, como se o silêncio fizesse todo este ritual kafkiano custar menos, como se o tribunal fosse algo de onde só se quer sair rapidamente e sem dor, ainda que se escolha o pior caminho: o do silêncio, feito consentimento. Este silêncio, fácil para quem o exerce, faz transferir para os ombros dos advogados o peso da condenação, porque calar-se é ficar, de antemão, convencido das razões alheias.

Saio do tribunal com uma colega, que assistia à audiência e que elogia a minha vontade e a minha juventude. Sinto-me pesada por dentro e penso que, daqui a uns anos, estarei num sítio qualquer a escrever, sozinha, onde só o meu silêncio me valha. Amortalho a toga debaixo do braço e tento equilibrar-me nas escadas íngremes. Penso que não vale a pena, que tudo isto é esforço em vão, que a chuva miúda que me cai na cara é infinitamente mais real do que o que acabou de acontecer, porque o que acabou de acontecer ficou inscrito num espaço ininteligível que é o da convicção do tribunal, ou melhor, daquilo que dela subsista quando chegar a altura da decisão.

1 comentário:

Manuel Bruschy Martins disse...

Vejo paixão no que faz. Isso é sempre admirável. Isso o silêncio não pode calar, nem a indignação feita confissão que nos deixa o permite. A revolta é o derradeiro som, o derradeiro escrito, a derradeira expressão humana.