sexta-feira, 19 de outubro de 2007

A dança dos Espectros

A sala estava composta. A mesa ampla das negociações estava novamente rodeada por brilhantes advogados. Nos jornais, as notícias do costume davam conta da realização da reunião. As razões estavam alinhadas, as estratégias traçadas e cada um daqueles advogados sabia exactamente que papel cumprir. Os rostos eram sisudos, fechados, de uma velhice convocada por antecipação à custa da necessidade da representação. Nem uma senhora à mesa. Mundo de homens, hermético, onde o ritmo das negociações seguia o compasso dos vícios masculinos, único espaço de partilha disponível.
Ninguém reparava neles. É difícil reparar-se nas coisas que nos obrigamos a esquecer. Pairavam suspensos sobre a mesa, como medusas de vestes vaporosas e esfiapadas. Eram seres inexistentes, colocados num espaço e num tempo amodorrados pelo esquecimento.
O mais novo dos espectros era o escritor. Falecera quando Filipe aceitara o convite para, depois de um estágio entediante, integrar a lawfirm. Filipe assassinara-o. Homicídio qualificado, cometido com o móbil do «motivo torpe ou fútil» que, no caso, fora dinheiro. Filipe matara por dinheiro, matara a soldo e, naquela mesa de negociações, era o único que, desconhecendo embora a existência do seu espectro, carregava ainda a culpa qualificadora do crime que cometera.
Com o correr dos anos, o conforto da vida e a acomodação que ele propicia levariam a culpa de Filipe até ao limbo do esquecimento. Mas no dia da reunião, o espectro de Filipe era ainda o mais nítido, oculto embora à visão dos presentes.
O actor também viera, não obstante entender que a sua presença era quase injustificada pois, no seu caso, quem o burlou não foi capaz de culpa. Sim, foi uma burla, daquelas a que, por influência napoleónica se costumam caracterizar como suportadas por um artifício fraudulento. Encenação, mentira e trapaça. Chamava-se Luís e cometera um acto atroz: usou a sua arte para passar a fingidor bem pago. Contencioso. Por palco, o tribunal, por personagem, o advogado, por disfarce, a toga. Trocou o futuro incerto pelo emprego calculista da arte. Mas a arte pregou-lhe uma partida: estava a abandoná-lo aos poucos. Por enquanto, tal não representava qualquer perigo, pois era segredo que não tencionava partilhar com ninguém. Até porque um advogado não tem segredos, já que a existência de segredos pressupõe, ontologicamente, a existência de pessoas que os possam guardar e fazê-los subsistir enquanto tal e essas pessoas não existiam no mundo da advocacia.
Os dois espectros evolavam-se sobre a mesa vendo, lá muito em baixo, as bocas a abrir e a fechar dos advogados. Contemplavam-nos, quase incrédulos. A cena era patética ao ponto de os espectros não reconhecerem os seus carrascos. Aqueles advogados eram todos iguais e nem Filipe, nem Luís, artistas por condição, se diferenciavam, afinal, dos demais. Osmose. Simbiose. Fusão, em sentido técnico: de modos de pensar, de viver, de agir. De papéis. De repente, uma corrente de ar varre a sala, as portas e as janelas começam a bater incessantemente. Nesse momento, Filipe percebe que algo está a pairar no ar, mas é incapaz de identificar o que seja. Vergonha da verdade, na sua crua evidência. Mentira cómoda, esquecimento. As manchas que os presentes na sala não vislumbram ser espectros decidem abandonar a sala, fundindo-se numa nuvem invisível aos advogados que, lá de baixo, só sentem o frio que rodopia pela sala e que se escapa pela janela. Filipe, subitamente, estremece e um frio cortante percorre-lhe a espinha. Os espectros saem da sala e, no momento imediatamente antecedente àquele em que as janelas batem pela última vez, Filipe sente, pela última vez na vida, a saudade de um futuro que chacinou. Nunca mais se irá lembrar daquela culpa que, tendo a janela por ponto de fuga, dela saiu sob a forma de um espectro.

2 comentários:

Anónimo disse...

Estou a ver que a sabática te está a fazer bem à criatividade...

sibila disse...

Estou no escritório...ainda. Sim, mentalmente, estou de sabática. bjs