É sábado de manhã. Uma manhã soalheira e fria, invernosa. Acordei tarde e vagueio pelo Jardim do Príncipe Real, enquanto um amontoado de gente calcorreia as bancas de velharias. Desde gramofones, livros, loiças e bijutarias, tudo de expõe à passagem de gente que remexe, ávida de novidades que entre velharias se possam albergar, despojos de silêncios idos, como o são as coisas em segunda mão à espera de dono.
Gosto muito de objectos antigos. Seria, aliás, incapaz de viver numa casa mais recente do que o meu provisório estar no mundo. As coisas anteriores a mim ganham uma transcendência que quase as liberta da condição de coisas. Mas esta é outra meditação, onde hoje não me vou deter.
Na feira de antiguidades há memórias amarelecidas pela auréola baça do tempo que as marca. Há rendas, livros, objectos em marfim, bijutaria descascada e objectos kitsch para todos os maus gostos que se possam conjecturar. A estética aqui (e falando de estética em sentido filosófico), fica escudada por uma barreira que é aquela que marca os objectos pelo passar dos anos sobre eles porque, creiam-me, os objectos guardam em si a progressão imparável da História, muito para além das vivências de que, transitoriamente, sobre eles exerce o precário direito de propriedade.
Existe um monte de peças de vison e de colares. Gosto muito de ambos e se não uso mais uns e outros é por questões sociais banais demais para aqui serem convocadas. Detenho-me, porém, num colar de contas gradas avermelhadas, que ficaria a matar com uns brincos Gucci de mola que me chegaram às mãos vindos de uma outra história que um dia vos contarei. Percorro as contas com os dedos, e resisto à tentação, impondo-me o sacrifício cristão do Advento.
Sou, momentaneamente, assaltada por um desejo de pensar na mulher de cujo pescoço aquele colar terá pendido e de repente ela está ali, junto às árvores do Jardim e já é real ao ponto de me ser próxima e de o colar ser uma forma de continuidade do eterno feminino.
Esta é uma zona da cidade onde as cesuras sociais se mostram de forma mais desabrida ao olhar. Gente sem luz em casa convive, paredes meias, com famílias da dita aristocracia lisboeta que, desde os tempos dos Condes de S. Marçal e do Eduardo Coelho e da sua desventurosa filha, perduram através da política familiar das proles alargadas.
Penso nas senhoras que, domingo após domingo, encontro na Igreja de S.Mamede e que me devolvem um olhar intrigado por me desconhecerem, quer da sua banda social, quer da banda social onde praticam a caridade que a sociedade lhes impõe hipocritamente. Penso sobretudo nas mulheres que, ostensivamente abastadas, frequentam o ofício religioso rodeadas de um silêncio que escuda solidões e decepções. Quiçá um marido infiel, quiçá uma filha drogada ou uma doença da moda.
Penso que aquilo que nos traz sofrimento, estranhamente, perdura menos no espaço sideral que ocupamos que um colar de contas vermelhas e não resisto à auto-provocação intelectual de conjecturar uma feira de sentimentos demodés. Seria interessante, se bem que penso que os preços seriam bem mais elevados. Talvez eu prefira acreditar que assim seria.
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