Espraiam-se, ante o meu olhar cansado, enciclopédias de conhecimento que, por mais buracos que escave, fundos como poços, lá não podem caber. Sinto, em cada hora que passa, o meu corpo a ficar pesado, e não é de conhecimento, é de medo.
A tese cresce, timidamente, entre compromissos que sei que vão desagradar a muitos. Mas é preciso continuar. No cinzeiro, os despojos de meu medo avolumam-se, enquanto lá fora o sol descreve círculos de luz coados pela janela que é o que me separa da continuidade das coisas deixadas em suspenso.
Estudar tinha deixado de ser um hábito quotidiano. Estudar como nos tempos da faculdade, com paixão, loucura e fascínio. E a tese vai crescendo, como um polvo de mil tentáculos que saíu do meu controlo e é já uma criatura diferente de mim.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
domingo, 3 de fevereiro de 2008
Um homem
Na minha terra, à distância do tempo que me aparta da meninice, havia um homem chamado Simplício. Não me perguntem o apelido, porque no Alentejo não há apelidos, só alcunhas. Era um cantoneiro fanfarrão, boémio e de quem se dizia ser amante de muitas senhoras da vila. Era um homem de tez escura e que me dizia que era assim porque lavava a cara com o alcatrão com que trabalhava «lá longe, na estrada nova».
Lembro-me de um dia lhe ter perguntado onde era a casa dele e de me dizer que não tinha casa. Lembro-me da gargalhada que lhe saíu da boca mirrada pelo tabaco de enrolar, ante a minha estupefacção. Quando eu tinha cinco anos, acreditava que ter casa era como ter braços ou pernas. Naturalmente que não lhe percebi o embargo na voz motivado pelo facto de aquela afirmação ser sinónimo de não ter ninguém que o amparasse. Hoje percebo, tarde demais.
O Simplício era um homem grande e ossudo, de tez escura e de voz cava. Lembro-me do cheiro do tabaco «águia», que retirava das onças que guardava dentro do casaco de quadrados que, de verão e de inverno, lhe envolvia o corpo curtido. Lembro-me de vê-lo envolver o tabaco em mortalhas «zigue-zague» que, com uma linha de saliva deixada por um movimento preciso da língua esguia, transformava em cigarros que, muitas vezes, apagados, lhe dançavam ao canto da boca.
Eu e o meu irmão (que tem a minha idade) gostávamos muito dele. O meu irmão um dia andou com ele a brandir uma bandeira do PCP (daquelas vermelhas, com a foice e o martelo em amarelo) vila afora e eu, do alto dos meus sete anos, apartei-me da iniciativa e tive a primeira das tiradas políticas que a minha família ainda cita, entre risos.
Foi o Simplício que me disse (não a Virgínia Woolf que li anos depois, como se o ensinamento do Simplício não fosse suficiente) que morrer era possível. Eu estava muito doente, e o Simplício, que era visita da casa dos meus pais, conseguiu furar a muralha protectora de que os meus pais me rodearam, com medo de que o diagnóstico dos médicos de Lisboa se confirmasse. O Simplício foi a única pessoa que, nessa fase da vida, me disse uma verdade.
De outra vez, o Simplício, ébrio, gritava, alta voz, na minha rua, que as mulheres que ali viviam eram todas dele. No dia seguinte, perguntado pelo significado da afirmação (foi a minha mãe que lhe fez a pergunta) disse: «minha senhora, estas mulheres são todas minhas...vizinhas».
O Simplício morreu numa matança que houve na herdade e eu estava lá. Na hora de desferir a estocada no animal que se debatia, uma pata soltou-se e foi contra o peito do Simplício que, cambaleando, ria e dizia que não era nada. Morreu alí, à vista de todos e nem os cuidados da minha mãe, das minhas tias e da minha irmã mais velha me impediram de vê-lo, inerte, a tombar no chão, com um esgar trocista no rosto queimado de alcatrão. Foi o meu pai que me levantou no ar, mas eu ainda me virei e vi o Simplício a cuspir sangue, que se espalhava pelo peito e pela mão com que esfregava a boca.
Sonho muitas vezes com a morte patética do Simplício, e oiço o cair chapinhante do seu corpo inerte no chão lamacento da herdade. Foi o primeiro morto que vi e ainda não acredito. Sinto, vivo na minha boca, o sabor ferroso dos gomos de maçã que me descascava com a faca «rabo de lagartixa» que, com vaidade, tirava do bolso das calças. Por isso, a queda mortal de um cantoneiro analfabeto que aconteceu ante os meus olhos de menina, permanece tão viva no meu pensar, quando se acabam de completar vinte anos após tão patético episódio.
Lembro-me de um dia lhe ter perguntado onde era a casa dele e de me dizer que não tinha casa. Lembro-me da gargalhada que lhe saíu da boca mirrada pelo tabaco de enrolar, ante a minha estupefacção. Quando eu tinha cinco anos, acreditava que ter casa era como ter braços ou pernas. Naturalmente que não lhe percebi o embargo na voz motivado pelo facto de aquela afirmação ser sinónimo de não ter ninguém que o amparasse. Hoje percebo, tarde demais.
O Simplício era um homem grande e ossudo, de tez escura e de voz cava. Lembro-me do cheiro do tabaco «águia», que retirava das onças que guardava dentro do casaco de quadrados que, de verão e de inverno, lhe envolvia o corpo curtido. Lembro-me de vê-lo envolver o tabaco em mortalhas «zigue-zague» que, com uma linha de saliva deixada por um movimento preciso da língua esguia, transformava em cigarros que, muitas vezes, apagados, lhe dançavam ao canto da boca.
Eu e o meu irmão (que tem a minha idade) gostávamos muito dele. O meu irmão um dia andou com ele a brandir uma bandeira do PCP (daquelas vermelhas, com a foice e o martelo em amarelo) vila afora e eu, do alto dos meus sete anos, apartei-me da iniciativa e tive a primeira das tiradas políticas que a minha família ainda cita, entre risos.
Foi o Simplício que me disse (não a Virgínia Woolf que li anos depois, como se o ensinamento do Simplício não fosse suficiente) que morrer era possível. Eu estava muito doente, e o Simplício, que era visita da casa dos meus pais, conseguiu furar a muralha protectora de que os meus pais me rodearam, com medo de que o diagnóstico dos médicos de Lisboa se confirmasse. O Simplício foi a única pessoa que, nessa fase da vida, me disse uma verdade.
De outra vez, o Simplício, ébrio, gritava, alta voz, na minha rua, que as mulheres que ali viviam eram todas dele. No dia seguinte, perguntado pelo significado da afirmação (foi a minha mãe que lhe fez a pergunta) disse: «minha senhora, estas mulheres são todas minhas...vizinhas».
O Simplício morreu numa matança que houve na herdade e eu estava lá. Na hora de desferir a estocada no animal que se debatia, uma pata soltou-se e foi contra o peito do Simplício que, cambaleando, ria e dizia que não era nada. Morreu alí, à vista de todos e nem os cuidados da minha mãe, das minhas tias e da minha irmã mais velha me impediram de vê-lo, inerte, a tombar no chão, com um esgar trocista no rosto queimado de alcatrão. Foi o meu pai que me levantou no ar, mas eu ainda me virei e vi o Simplício a cuspir sangue, que se espalhava pelo peito e pela mão com que esfregava a boca.
Sonho muitas vezes com a morte patética do Simplício, e oiço o cair chapinhante do seu corpo inerte no chão lamacento da herdade. Foi o primeiro morto que vi e ainda não acredito. Sinto, vivo na minha boca, o sabor ferroso dos gomos de maçã que me descascava com a faca «rabo de lagartixa» que, com vaidade, tirava do bolso das calças. Por isso, a queda mortal de um cantoneiro analfabeto que aconteceu ante os meus olhos de menina, permanece tão viva no meu pensar, quando se acabam de completar vinte anos após tão patético episódio.
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